O MENINO QUE QUERIA SER GORDO

Ilustração: Gregory Christie
Domingos é um menino ambicioso. Vive numa aldeia isolada e pobre, vai à escola e ainda ajuda a sua mãe que se sacrifica a vender doces de coco para alimentar 3 filhos pelo menos 2 vezes por dia. Para além disso, Domingos quer ser presidente, mas acha-se com fraca figura - 8 anos, um metro e qualquer coisa, pouco mais de 14 quilos, disse-lhe a enfermeira da última vez que visitou a aldeia. Mas o Domingos não se tranquiliza com a sua figura, quer ser presidente e por isso quer ser um menino gordo! Porque afinal o seu presidente é gordo. Então Domingos decidiu que faria tudo para alcançar o seu objectivo. E assim começaram as suas tentativas…

… Decidiu que de cada vez que a mãe o mandasse apanhar cocos, ele comeria metade!  No dia seguinte apanhou 10 cocos e pelo caminho comeu 5. Ficou de barriga cheia e de barriga cheia apanhou uma sova da sua mãe que só conseguiu fazer metade dos doces, vender metade dos doces e naquele dia alimentar metade das vezes os seus 3 filhos. Contas feitas, menos uma refeição naquele dia, não resultou, o Domingos não engordou...


… Então decidiu que iria apanhar bananas no quintal do vizinho. Domingos ficou alerta, o sol pôs-se e lá foi ele decidido a comer quanto conseguisse. Só que estava escuro, Domingos tropeçou e caiu, foi apanhado assim mesmo de queixo no chão e com umas quantas bananas todas esmagadas debaixo dele, na camisola dobrada para cima que servia de saco. Domingos levou um valente sermão, não dormiu, não ceou e não engordou…

… Então Domingos decidiu viajar para a cidade porque lá é que há meninos gordos. Como não tinha dinheiro para o bilhete de autocarro, Domingos foi a pé, 20 quilómetros debaixo de sol, sem beber e sem comer. Quando chegou, Domingos não viu árvores de fruto, nem campos de milho, nem búzios do mato. Em vez disso viu prédios, mercados e ruas cheias de carros. Domingos percebeu que precisava de dinheiro para poder comer e não tinha nem uma moeda. Depois de um dia tão cansativo o seu figurino mais enfezou e mais uma vez Domingos não engordou….

… Mas não desistiu. Domingos caminhou até que encontrou um parque verde dentro da cidade. Entrou e sentou-se na relva a pensar como subiria à árvore de mangas, sem que o homem vestido de segurança o apanhasse. Aí apareceu um menino gordo da cidade que o convidou para jogar à bola. Domingos disse decidido que não quer jogar à bola porque isso deixa os meninos mais magros, é como andar até chegar à cidade! Mas o outro menino apostou que se o Domingos jogasse e ganhasse podia ficar com o seu lanche. O outro menino logo se cansou e o Domingos ganhou. Mas o Domingos não engordou, em vez disso pensou…

… Domingos pensou que ainda quer jogar muito à bola sem se cansar antes de ser presidente.

Pegou no lanche e decidiu voltar à sua aldeia, pelo caminho comeu, bebeu e depressa chegou. É que já é segunda-feira, dia de escola.



A origem dos alimentos

Plantação de café na Roça de Monte Café em São Tomé 
Assim como fiz com o ananás, vou continuar a publicar pequenos textos sobre alguns alimentos pouco habituados a crescer à vista da maior parte de nós. Não é que o google não nos ensine em poucos segundos a origem de um alimento, mas eu gosto desta ligação à terra e gosto que a natureza me impressione. Porque a verdade é que o amendoim nasce debaixo de terra, o cajú numa árvore e o tremoço numa vagem. Não descobri assim há tanto tempo, certamente depois da minha primeira cerveja. Até ali eram apenas snacks. Uma injustiça colocá-los no mesmo pires que a outro qualquer que a mãe natureza não encomendou! Agora que olhei melhor, vejo-os bem mais interessantes e aparecem-me todos alinhados em tabelas de valores nutricionais, com vitaminas de A a K, sem corantes nem conservantes.

Em cada alimento, a mãe-natureza mostra a sua eficiência, o seu equilíbrio e a sua criatividade. É incrível entrar no La Boqueria, o grande mercado de frescos de Barcelona, e perceber a quantidade de frutos que não conhecemos. É incrível entrar num mercado de frescos biológicos e sentir os aromas de todos eles. Mas mais incrível ainda é vê-los crescer. Passearmo-nos no interior natural de qualquer parte do globo e ir questionando o que dá o quê. E vão com tempo, porque vão precisar!



O REI TROPICAL


Ananás
Nós trópicos assiste-se àquela performance da natureza, em que um rei decide aparecer do seio da rainha-mãe em truque de cabaret, todo dourado e glamoroso! Já vem de coroa para assumir o trono, o irreverente ananás - porque nem toda a fruta tem que ser doce e fácil de descascar, porque nos trópicos já há muitas bananas e porque a personalidade forte dele é mesmo assim, primeiro exige que se sinta a acidez e só depois a doçura!

Porque calor pede bebidas refrescantes e corpos airosos

"De manha tomo café, respondeu Pereira, e depois almoço e janto, como toda a gente, é muito simples. E o que come habitualmente, perguntou o doutor Cardoso, quer dizer, que tipo de alimentação tem? Tortinhas, ia responder Pereira, praticamente só como tortilhas, porque a minha porteira me deixa pão com tortilhas e porque no Café Orquídea só servem omeletes com salsa. Mas sentiu-se envergonhado e respondeu outra coisa. Um alimentação variada, disse, peixe, carne, verduras, sou bastante frugal a comer e como de um modo racional. E a sua obesidade quando começou a manifestar-se?, perguntou o doutor Cardoso. Há uns anos, respondeu Pereira, depois da morte da minha mulher. E quanto a doces, perguntou o doutor Cardoso, come muitos doces? Nunca, respondeu Pereira, não gosto, só bebo limonadas. Limonadas como?, perguntou o doutor Cardoso. Ao natural, de limões espremidos, disse Pereira, gosto de limonadas, é refrescante e tenho a impressão de que me fazem bem aos intestinos, porque tenho muitas vezes os intestinos desarranjados. Quantas por dia?, perguntou o doutor Cardoso. Pereira reflectiu uns instantes. Depende dos dias, respondeu, agora no Verão, por exemplo, aí umas dez. Dez limonadas por dia!, exclamou o doutor Cardoso, doutor Pereira  acho isso uma loucura, e diga-me, põe-lhes açúcar? Encho-as de açúcar, disse Pereira, meio copo de limonada e meio de açúcar."

excerto de Afirma Pereira de Antonio Tabucchi



Hospital dos pequeninos


É um hospital para meninos saudáveis. Nenhum menino doente entra. Não tem ligaduras nem linhas, não tem tintura de iodo nem água oxigenada, não tem alicates nem estetoscópios, não tem xaropes, comprimidos nem sacos de soro nem nada que te possa deixar com medo. O que vais lá fazer, de qualquer modo, se não estás doente? Nada, absolutamente nada, pensas tu. E por que delírio tem o nome de hospital?! É fácil, é porque lá se distribui saúde! E aos pontos! Hoje vens cá e recebes no teu boletim 5 pontos por cada consulta em que participares. Tens o médico que fala de alimentos, tens o que fala dos dentes, tens o que fala da higiene, tens o que fala do coração e o que cuida da emoção. E tens outros também, não vás querer aprender sobre coisas novas. É bom ir lá, sais cheio de saúde! Depois só tens que guardá-los bem, porque já sabes que a cada asneira lá se vai um ou dois pelo cano. E o Jeremias? Que de tão tolo que foi, andou a beber tanto refrigerante que os gastou todos? Só se apercebeu quando o dente começou a doer. Ficou bem preocupado! O que o safou foi o amigo que lhe emprestou uns pontinhos para que ficasse bom novamente! No dia seguinte lá foi o Jeremias, já cheio de saúde, ao hospital para poder retribuir o seu amigo. Veio, deu-lhe os pontos e um abraço e foram brincar.

(Porque nenhuma criança merece ficar doente antes mesmo de aprender a viver...)

A máquina que trabalha léve-léve

Crianças a semear uma horta em Monte Café, com apoio da ONG  Helpo
"The gears of poverty, ignorance, hopelessness and low self-esteem interact to create a kind of perpetual failure machine that grinds down dreams from generation to generation. We all bear the cost of keeping it running." 
Carl Sagan

A pobreza vive de fome, a fome vive de fraqueza e a fraqueza de muitos fracos juntos é pouca para lutar contra a pobreza. Ainda que a responsabilidade deva estar do lado do governo responsável pelos mais fracos, qualquer instituição que injecte um pouco de alimento, conhecimento e auto-estima, está a injectar força para que a máquina ganhe movimento. Estou de acordo com muitas críticas, mas também acredito nisto!



Independentemente do âmago, o rigor deve ser o mesmo

Fisiologicamente funcionamos de forma igual mas, quando há um desequilíbrio da nossa "máquina", o código de reparação é certamente bem diferente. Enquanto nutricionista esqueço parte da bibliografia que tanto usei num país desenvolvido e avanço para uma identificação detalhada de todas as ferramentas que me podem ser úteis aqui. Começo por conhecer bem todos os alimentos disponíveis e o seu valor nutricional, junto todo o conhecimento empírico dos locais, identifico os tratamentos disponíveis a nível dos cuidados de saúde e tento elaborar os meus próprios códigos. Faço-o com toda a cientificidade que me for possível. E aqui é que está a maior dificuldade do nutricionista que trabalha num país em desenvolvimento - é a curta obra bibliográfica, tudo aquilo que já foi feito e reportado especificamente para estas condições.

Se me perguntarem se é mais importante trabalhar aqui ou num país desenvolvido, a minha resposta é que é igual. Cada um com os seus problemas. Se me perguntarem onde é que é mais difícil trabalhar, então respondo que é aqui, onde há menos ferramentas. O que me move por cá não é a caridade. Também não é o sabor tropical do dia-a-dia. É essencialmente sentir que há menos remadores deste lado, que cada trabalho que eu e a meia dúzia (não mais) de nutricionistas fazemos aqui aproxima o conhecimento ao do "mundo desenvolvido".

Mais vezes este será tema neste blogue.

São Tomé é fértil. Mais, é superfértil!


Pitaya


Aqui cai uma semente que o vento trouxe de Taiwan e o improvável na terra da chuva acontece. A semente dá um cacto, o cacto dá uma flor, a flor dá um fruto! O fruto chama-se pitaya e é de um sabor e beleza dignos de fazer frente a qualquer invenção molecular gastronómica de uma mesa gourmet ocidental. Aqui sabe bem assim, em fatias ou à colher, para refrescar o corpo do calor tropical e da humidade que a floresta fechada abafa em direcção ao mar!

De lá até cá

Agora já noutra latitude desde a última mensagem que decidi não apagar... conto a distância em milhas, conto o tempo em anos luz, conto as semelhanças dentro da mesma fronteira continental, conto as diferenças em quase todas as parecenças. Porque afinal África não é um país e o tempo em África conta-se pelo número de obstáculos e pelo número de acessibilidades. A primeira atrasa o tempo, a segunda fá-lo seguir caminho.
Abri este blog em Moçambique e deixei-o parado na mesma altura. Agora dou-lhe novo rumo, a partir de São Tomé e Príncipe.