AS COISAS BOAS TAMBÉM TÊM UM LADO MAU

Ilustração de Charlynn A

Naquele dia estava tombada, grudada no chão e parecia ainda maior do que quando Elias olhava para ela de baixo e sonhava poder crescer tanto quanto ela e ver, de lá de cima, todas as paisagens que tentavam tocar o horizonte. Naquele dia Elias saiu de casa ao ouvir um grande estrondo, ficou imóvel até que toda a poeira assentasse e se tornasse solo novamente. Cento e trinta anos de mangueira deitados por terra! De repente parecia estar num sítio diferente. Um sítio com mais luz - que lhe encadeava a visão e a noção do espaço onde sempre vivera e que hoje deixava de lhe parecer familiar. Um sítio mais aberto, mais amplo, mais vazio e com a grande matriarca ali reduzida a defunto. Já nem os pássaros se ouviam, fugiram todos da árvore-edifício que os abrigava.

Elias correu atrás dos assassinos a gritar "PORQUE É QUE A MATARAM?" Mas não mereceu mais do que uma resposta  seca a dizer "chega-te para lá rapaz". Então Elias correu pela aldeia atrás do régulo - aquele senhor patriarca e chefe da aldeia, que conhecia todos os segredos, da árvore e do mundo. O régulo sabe contar todas as histórias que guarda na sua memória-biblioteca, escrita pela sua visão sábia do mundo. Era um sábio e devia ter quase tantos anos quantos aquela árvore. Se não tinha, parecia ter.

Foi ele que explicou pacientemente ao Elias que aqueles homens de catana e moto serra queriam construir uma biblioteca naquele sítio e que para isso tiveram que remover a grande árvore centenária. O próprio deu autorização, pois aquela aldeia não tinha biblioteca e árvores tinha muitas. Com a sua madeira iriam construir estantes, mesas e cadeiras. A árvore continuaria lá, mas desta vez a cumprir uma nova missão, a de sentar livros e pessoas, dar o seu lugar à educação. " É uma missão muito nobre, muito digna" disse ainda. Elias era ainda muito pequeno para perceber a importância de uma biblioteca, mas sabia que aquela árvore, duas vezes por ano, dava muitas mangas saborosas que lhe matavam a fome. Aquela era a sua árvore, onde brincava, onde sonhava à sombra em ser herói, onde fazia os trabalhos de casa, onde aprendeu malabarismos, onde tentava caçar pássaros com a sua fisga, onde viu pela primeira vez macacos e cobras.

"A biblioteca vai dar fruta?" perguntou finalmente Elias.

Não, não vai. Mas vai dar frutos. A longo prazo aquela biblioteca vai ajudar a matar a fome do Elias. Até lá terá que sobreviver e aprender. Também terá que ter uma boa visão para poder ler muito, mas infelizmente já não tem mangas ricas em vitamina A para poder comer.