Mais um ano, mais outro. A minha mãe cada vez maior. As mãos e os braços cada vez maiores, abraçam cada sol e cada lua. Estão onde eu estou. Abraçam o frio como ninguém. Acendem uma lareira e o calor embrulha-nos. Sabe a abraço de mãe. Os dedos não se gastam, gretam e ficam cada vez mais rijos. Preparam tudo com capricho. O bacalhau tem horas certas para demolhar, o presunto espessura certa para se cortar, a cebola tem quantidade certa de azeite para se refogar. Toda a casa cheira a mãe. Os cheiros abraçam os sentimentos e o calor da lareira abraça o frio. Estou em casa. Posso viajar e a minha mãe continua enorme. Faz parte de cada pensamento e de cada sentença. Faço assim ou faço assado porque desde pequena foi sempre assim ou foi sempre assado. Entranhou-se em mim. A cabeça dura de mãe com ventre macio. Todas as teimosias pelas suas meninas. Tudo à frente pelas suas meninas. A minha mãe que caminha sempre em frente, sapatos de rampa ou salto pouco alto. Com uma tira a meio, de preferência. Uns sapatos confortáveis porque o apoio do corpo tem que ser confortável. A minha mãe está cada vez maior. A minha mãe é o meu apoio mais confortável.
A seriedade de um homem velho
Ilustração de Julio Dolbeth |
A dura realidade
de um homem duro, é envelhecer.
O homem velho
fica ali sentado, em frente à sua casa, na sombra do ilangue-ilangue, a árvore
perfumada. Todos os dias, às 5 horas da tarde, o ilangue liberta o agradável
aroma das suas flores em forma de folhas. Envelheceram juntos, homem, casa e
ilangue. Se nas árvores a idade se conta pelos anéis de crescimento, naquele
homem velho conta-se pelas rugas que agora lutam pelo pouco espaço livre. Ainda
bem que não têm que cortar um homem ao meio para contar a sua idade, pensou.
Sorriu por dentro. Será que a sua seriedade se deve a sorrir por dentro? Não. O
comando do cérebro já não tem força para pôr a trabalhar os músculos da cara.
Assim se vai perdendo alguma autonomia, com o passar do tempo. Os músculos
cansam-se. Hoje já não tem forças para segurar numa enxada. Toda a sua vida
tratou da machamba. Agora está seca. Sente a idade nas pernas, cada vez mais
pesadas, cada vez a puxá-lo para mais perto do chão, onde um dia se deitará
perpetuamente. A sua expressão não altera ao pensar nisto. Será que a sua
seriedade se deve à fraqueza? Não. O trabalho de enxada nunca foi fácil. Mas 7
bocas para alimentar fizeram suar um pai de família. Hoje cada uma dessas bocas
está responsável de lhe trazer uma refeição por semana. Uma refeição por dia
para um homem velho não é suficiente. Mas os tempos não estão fáceis. O corpo
há-de aguentar, está a definhar mas continua rijo. Será que a sua seriedade se
deve à fome? Não. Um homem velho deixa de ouvir o relógio do estômago quando o
contra-relógio do coração bate mais alto. Também o velho ilangue, todos os dias
à mesma hora, avisa o velho homem que mais um dia se passou. O homem velho não
gosta de contar o passar do tempo com o pôr-do-sol, esse traz escuridão, já o
ilangue traz perfume. Fá-lo recordar os dias em que pendurava flores de ilangue
em vez de brincos na sua namorada, futura e agora falecida esposa. Será que a
sua seriedade se deve à tristeza? Não. O homem velho aprendeu a somar e a
subtrair, a sentir a vida a ir e a vir. Guarda com carinho as recordações nos
espaços que partilhou com a sua esposa. A casa deles. Agora sabe que a alma da
casa é o abraço mais aconchegante que sabe receber em silêncio.
A que se deve
então a seriedade do homem velho? Pode não haver resposta concreta, mas há
comparação - o homem velho era, no fundo, igual à sua casa, forte na estrutura,
envelhecido pelo tempo, preso na expressão.
MULTIDISCIPLINARIDADE
Ilustração de Yara Kono |
Tanto está farto. Na turma não o deixam ser o Igual.
Chamaram-lhe assim porque já existia o Muito. E o Muito, por muito que custasse
ao Tanto, era menos do que o Tanto. Tanto podia ser tantas coisas mas era
apenas o gordo, muito gordo, tanto que era o mais gordo de todos. Mais gordo do
que o Muito, que também é muito gordo. Tanto comia tanto. Tanto descansava
tanto. Tanto queria ser o Igual, até porque na turma ninguém era o Igual. O
Manuel era o Pouco, o Artur era o Quase Tanto e o Rui era o Muito Pouco.
Ninguém era o Igual. Mas este era apenas um jogo da professora de matemática. O
que ela queria era que eles percebessem que o Igual não existe sozinho, são
precisos pelo menos 2. Como não há dois iguais, nem 3, nem 4, torna-se difícil
achar o que é normal. Assim a professora, com a sua amostra, apercebeu-se que
estava mais preocupada em acabar com o bullying que o Tanto tanto sofria do que
em explicar o que é a curva normal no módulo de estatística.
Não sou infantojuvenil nem tenho filhos...
Mas li de uma vez só todo o caderno vermelho da rapariga Karateca. E acho que todos os outros também. Por isso gosto de os ver ganhar o prémio europeu de melhor editora de livros infantojuvenis. Parabéns aos senhores do Planeta Tangerina!
AS COISAS BOAS TAMBÉM TÊM UM LADO MAU
Ilustração de Charlynn A |
Naquele dia estava tombada, grudada no chão e parecia ainda maior do que quando Elias olhava para ela de baixo e sonhava poder crescer tanto quanto ela e ver, de lá de cima, todas as paisagens que tentavam tocar o horizonte. Naquele dia Elias saiu de casa ao ouvir um grande estrondo, ficou imóvel até que toda a poeira assentasse e se tornasse solo novamente. Cento e trinta anos de mangueira deitados por terra! De repente parecia estar num sítio diferente. Um sítio com mais luz - que lhe encadeava a visão e a noção do espaço onde sempre vivera e que hoje deixava de lhe parecer familiar. Um sítio mais aberto, mais amplo, mais vazio e com a grande matriarca ali reduzida a defunto. Já nem os pássaros se ouviam, fugiram todos da árvore-edifício que os abrigava.
Elias correu atrás dos assassinos a gritar "PORQUE É QUE A MATARAM?" Mas não mereceu mais do que uma resposta seca a dizer "chega-te para lá rapaz". Então Elias correu pela aldeia atrás do régulo - aquele senhor patriarca e chefe da aldeia, que conhecia todos os segredos, da árvore e do mundo. O régulo sabe contar todas as histórias que guarda na sua memória-biblioteca, escrita pela sua visão sábia do mundo. Era um sábio e devia ter quase tantos anos quantos aquela árvore. Se não tinha, parecia ter.
Foi ele que explicou pacientemente ao Elias que aqueles homens de catana e moto serra queriam construir uma biblioteca naquele sítio e que para isso tiveram que remover a grande árvore centenária. O próprio deu autorização, pois aquela aldeia não tinha biblioteca e árvores tinha muitas. Com a sua madeira iriam construir estantes, mesas e cadeiras. A árvore continuaria lá, mas desta vez a cumprir uma nova missão, a de sentar livros e pessoas, dar o seu lugar à educação. " É uma missão muito nobre, muito digna" disse ainda. Elias era ainda muito pequeno para perceber a importância de uma biblioteca, mas sabia que aquela árvore, duas vezes por ano, dava muitas mangas saborosas que lhe matavam a fome. Aquela era a sua árvore, onde brincava, onde sonhava à sombra em ser herói, onde fazia os trabalhos de casa, onde aprendeu malabarismos, onde tentava caçar pássaros com a sua fisga, onde viu pela primeira vez macacos e cobras.
"A biblioteca vai dar fruta?" perguntou finalmente Elias.
Não, não vai. Mas vai dar frutos. A longo prazo aquela biblioteca vai ajudar a matar a fome do Elias. Até lá terá que sobreviver e aprender. Também terá que ter uma boa visão para poder ler muito, mas infelizmente já não tem mangas ricas em vitamina A para poder comer.
9 MESES E MUITAS CRIANÇAS
Boletim de saúde de uma criança que está no Programa |
Porque a inspiração para contos nem sempre me assiste e porque hoje é dia de comemoração, falo-vos sobre o meu trabalho!
Foram nove meses com um pequeno intervalo pelo meio para sair da roça e ir à cidade falar com Ana Rita Clara sobre este projecto. Deixo-vos o vídeo para recordação, não vá alguém passar por aqui e querer saber mais e quem sabe apoiar de alguma forma :)!
A NOITE RURAL EM ÁFRICA
Diálogo santomense
(a propósito da recente moção de censura ao Governo de São Tomé)
- Eeeeuuu, não estou nem um pouco interessada na sansão de moçura.
- Você matou Camões e ainda acha que está a falar português??
- Eeeeuuu, não estou nem um pouco interessada na sansão de moçura.
- Você matou Camões e ainda acha que está a falar português??
UM COLO PARA A MENINA
Ilustração: Karen Barbour |
(Esta é uma história verdadeira que publiquei nesta edição da revista Mundoh da Helpo, sobre uma criança de 9 anos com deficiência profunda. A sua
irmã é apadrinhada ao abrigo do programa materno-infantil da Helpo. A
sua madrinha não ficou indiferente e ofereceu uma cadeira de rodas adaptada. Esta oferta permite uma grande
melhoria da qualidade de vida da menina e de toda a família. Apesar de em São
Tomé os cuidados de saúde não permitirem um acompanhamento e fisioterapia desejáveis,
o conforto da cadeira permite-lhe ter uma esperança de vida maior e
um dia-a-dia mais feliz!).
METÁFORAS CULINÁRIAS EM TEMPO DE AUSTERIDADE
"Pão pão, queijo queijo". Cada um com as suas expressões. Não
fossem as tradições alimentares e culinárias tão variadas, não teríamos também
tão variada lista de figuras de estilo alimentícias de país para país. Em Portugal,
vivemos dias difíceis e, para eles, temos as mais variadas expressões e
metáforas culinárias. É como quem diz: "estamos feitos
ao bife!" Já a Alemanha tem a tradicional "Alles hat ein Ende, nur die
Wurst hat zwei", ou "tudo tem um fim, apenas as salsichas têm
dois". Enquanto nós continuamos "fritos", "j’ ai la frite" em
francês significa o contrário e utiliza-se quando se quer dizer que se está bem
e com energia. Querem mais expressões? "It’s
piece of cake" – é fácil, basta clicarem aqui!
E porque o meu blogue tem estado em "águas de bacalhau" e a
austeridade está "hasta en la sopa" - ou seja, não nos larga, deixo-vos
este diálogo com expressões que vou ouvindo por aí...
- Já leste que vamos ser visitados pela Alemanha? Será uma
oportunidade de puxarmos a brasa à nossa sardinha?
- Esquece, com os alemães não podemos ir aos figos!
- Certo, mas temo-nos a nós. Os portugueses são um povo
lutador, não somos nenhumas cabeças de alho chocho.
- Gostava de estar optimista, temo-nos a nós mas não temos
dinheiro e eu todos os dias confirmo que é impossível fazer limonada sem
limões!
- Portugal pode estar a comer o pão que o diabo amassou, mas
não podemos desanimar assim…
- Portugal não, o zé povinho! Não te esqueças que é sempre o
pão do pobre que cai com a manteiga para baixo.
- Vamos acreditar que dias melhores virão, as crises são
cíclicas e já sabemos que não há fome sem fartura.
- Não estou optimista como tu. A fome pela fartura é a do
povo pelas elites. Não aguento mais com
tanta mentira e insensibilidade que continuam a ser ditas em tom de carapaus de
corrida e que invadem as nossas casas com a força de tufões que destroem tudo
pelo caminho.
- Tens razão, já chega. Vamos mandar tudo às favas e emigrar!
A DEFESA DOS ALIMENTOS NATURAIS
Somos uma geração do século XXI, geneticamente próxima do Paleolítico, a viver com profundas modificações da alimentação e novos padrões de estilo de vida que nos empurram para as “doenças da civilização”.
Hoje não tive tempo para escrever nada, então deixo aqui um pouco do que li. Neste artigo do Professor Pedro Moreira, gostei especialmente deste parágrafo, que tão bem retrata o desentendimento entre o nosso organismo e os novos "alimentos". Podem ler todo o artigo aqui.
Hoje não tive tempo para escrever nada, então deixo aqui um pouco do que li. Neste artigo do Professor Pedro Moreira, gostei especialmente deste parágrafo, que tão bem retrata o desentendimento entre o nosso organismo e os novos "alimentos". Podem ler todo o artigo aqui.
UMAMI
- Vim buscar-te para o piquenique.
- Se não respondi é porque não estou minimamente interessado em ir.
- Eu percebi, por isso vim cá. Não te vou deixar embrulhado em pensamentos chuvosos com um sol tão simpático lá fora.
- Não insistas, não gosto de piqueniques, fico muito melhor a comer uma sandes de atum.
- Então comes a tua sandes de atum no piquenique. Vais ver que até fica mais saborosa.
- Não fica mais saborosa, é o mesmo pão com o mesmo atum.
- Guarda os pragmatismos para quando são necessários! Sabor é diferente de paladar. Paladar é um dos 5 sentidos. Sabor é um prazer dos sentidos, é alegria! É um conceito holístico, percebes?
- Doce, azedo, amargo, salgado - 4 sabores básicos. Assim se chamam. Sa-bo-res.
- Não são 4, são 5. Mas anda, ensino-te coisas interessantes no piquenique.
- Os sentidos é que são 5.
- São 5 e precisam ser estimulados!! Servem para sentires o ambiente, para traduzires o mundo físico para a mente e não para a tua mente fechada os inadaptar ao mundo físico. M-U-N-D-O com pessoas, sol, chuva, arco-íris, rios, risos, relva, areia, árvores, picadas de mosquito, gritos de crianças, cocó de cão nos chinelos, rissóis, melancia, futebol, óculos de sol e toalhas aos quadradinhos. Anda embora porque este apartamento é uma ofensa aos estímulos! Já preparei a lancheira, trouxe azeitonas para ti.
- Vou só ali buscar a cana de pesca e já venho...
- Não gozes... Trouxe cerveja.
- Ok convenceste-me.
- Oh yeeeah!
- Pouca excitação se fazes o favor, antes que eu mude de ideias.
- Umami.
- Umami o quê?
- É o quinto sabor. É como tu, agridoce...
A REVOLTA DAS BANANAS
Não se enganem pela fotografia que lhes chama banana-ananás, porque mais correcto seria chamá-las ananás-banana, assim como os amiguinhos ali do lado, os maracujás-banana, que têm sabor de maracujás e forma de bananas. As chiquitas espertas quiseram inovar e conseguiram um guarda roupa arrojado, pago a preço de experiência tropical em primeira classe. Abrilhantaram a montra e deixaram na sombra, debaixo da mesa, as corriqueiras bananas, tristes por cada turista que passa e nem as vê. Elas que numa investida verdadeiramente heróica conseguiram chegar a todo o mundo e adaptar-se a todos os gostos, matar fome, equilibrar intestinos, diminuir cãibras a atletas, fazer tão bem à saúde de todos, ser tantas e tão variadas - como a banana-maçã, a banana-prata, a banana-pão, a banana-ouro, a banana-do-gabão, a banana-da-terra, a banana-figo e tantas outras - e no final das contas ficam ali menosprezadas por aqueles que ingratamente inventaram a expressão que lhes apetece chamar agora, "esses bananas"!
O sindicato das bananas deixa aqui este desabafo contra a segregação frutal, sem tirar o valor às suas colegas ananás-banana e maracujá-banana, que lá que são bonitas e saborosas são, mas por um futuro frutífero para todos, reivindica trocar a cesta de lugar!
O FRUTO MAIS CONSUMIDO NO MUNDO
A sério. Dizem que a banana e a maça são os mais consumidos, mas devem referir-se a frutos em estado natural, sem processamento. Eu aposto no café, que ultrapassa fronteiras, classes sociais, cultura e religião. É aceite onde quer que entre. É um caso de sucesso milenar a estimular e a aumentar a produtividade! O que eu bebo em São Tomé é quase sempre feito numa cafeteira francesa, mas cultivado, seco e torrado aqui mesmo ao lado de casa. Não deve ser consumido em excesso, claro não, mas temos uma vida inteira para poder experimentá-lo de várias formas, origens e qualidades. Aqui fica um gráfico com praticamente todas as formas de fazer café pelo mundo fora, desfrutem!
O SOLITÁRIO PLANTADOR DE AMOR
Ilustração: Kyle Hughes-Odgers |
Logo de manha o senhor Ga tira as suas plantas do interior de casa e coloca-as na varanda ao sol e ao vento, sabe que o sol lhes dá energia e o vento lhes dá movimento. Depois rega-as com um regador, desde cima para que tomem banho e sintam o frio que agradece de seguida o calor, para que sintam os 4 elementos - ar, terra, fogo e água- para que a natureza nunca lhes falte em plena harmonia.
O senhor Ga também canta para as plantas, tem a certeza que cada vibração lhes melhora o crescimento, a tonalidade e a vivacidade. Elas respondem com sorrisos. Todas as plantas sabem sorrir para o senhor Ga e ele melhor do que ninguém sabe identificar a alegria e a tristeza de cada uma. Um dia uma couve partiu uma das folhas, até hoje o senhor Ga não sabe como é que isso foi acontecer e a triste couve chorou durante horas até a dor desaparecer. Outra dia o vento tombou uma camélia e o vaso partiu, as suas desafortunadas raízes começaram logo a sentir frio como uns pés descalços no inverno que acabam por secar e gretar.
Nada é mais importante para o senhor Ga, que não tem família. O senhor Ga nunca matou uma planta para de seguida a comer. Ele sabe que o ar que respira depende de cada pequena porção verde de vida que tão carinhosamente cuida. O senhor Ga podia não depender das suas plantas que mesmo assim não as comeria. O senhor Ga come apenas frutos e sementes em excesso que delas generosamente caem. Considera-se a si mesmo um "harmonívoro" pois acrescenta harmonia à sua condição de omnívoro.
O senhor Ga passa assim os dias, trata de todas as tarefas e depois senta-se junto às suas plantas e vê-as crescer. Um dia haverá de ter um grande quintal e plantar árvores de grande porte! Até lá não descuida das suas pequenas vidas que, ele sabe, floreiam como forma de lhe agradecer!
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